Era um campo de
concentração, diz 1º jornalista a ver o ‘holocausto brasileiro’
Por Renan
Truffi - iG São Paulo | 16/09/2013 11:24 -
Atualizada às 20/09/2013 16:53
Reportagem de Hiram Firmino, em 1979, impulsionou
fim dos horrores no manicômio de Barbacena, em Minas
“Crianças
pelo chão, entre moscas. Nenhum brinquedo, um psiquiatra qualquer. Pessoas
aleijadas, arrastando-se pelo chão, feito bicho. Agrupadas para não serem
pisoteadas, na hora da comida. Esperando a maca, a liberdade somente possível
através da morte. Um asilo medieval, de pedra e barras de ferro. Úmido,
frio e indesejável. Celas e eletrochoques, e todas as torturas médicas. Nenhuma
assistência ou calor humano. Como em um campo de concentração”.
Foi em
1979, um ano após a revogação do AI-5 (Ato Institucional número 5), que um
jornalista conseguiu entrar pela primeira vez no Hospital Colônia, o manicômio
de Barbacena, em Minas Gerais. A cena acima foi descrita à época
pelo então jornalista do jornal "O Estado de Minas" Hiram
Firmino.
Apesar da
surpresa do repórter, a situação fazia parte do cotidiano do Colônia havia
bastante tempo. O manicômio foi inaugurado em 1903. A barbárie começou a partir
de 1930, quando pessoas passaram a ser internadas sem ter sintomas de
loucura ou insanidade. Delegados, coronéis e pessoas influentes na sociedade
daquele tempo usavam o poder para mandar desafetos, gays, negros para serem
internados no hospício.
Livro
Holocausto Brasileiro conta história do genocídio de 60 mil pessoas em hospício
de MG. Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro
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Hiram
Firmino lembra de um garçom que costumava atendê-lo em um restaurante da região
e que foi mandado para o Colônia por causa de uma mudança de
comportamento. “Ele parecia tonto, meio bêbado um dia. Levaram ele. Ficou a
vida toda lá. Era uma pessoa que eu conhecia. Aquele lugar foi construído por
uma questão política. A maioria das pessoas morria no Colônia. Era um campo de
concentração”, afirma em entrevista ao iG
Ao
chegarem ao manicômio, os internados tinham uma rotina desumana. Dormiam juntos
em salas grandes sem cama. Todos tinham de se deitar sobre o chão do cômodo,
que era coberto apenas por capim. Acordavam por volta das 5h da manhã e eram
enviados para os pátios, cobertos apenas com trapos, onde suportavam o calor ou
o frio de Barbacena até 19h. Todos os dias.
“Fiquei
chocado (quando entrei no Colônia), até com vergonha. Escrevia tudo o que podia
ver. Estava trabalhando diante do horror. As pessoas eram tratadas igual
bichos. (Os internos) Eram lavados com vassoura, esfregavam as costas deles
enquanto jogavam água de mangueira. Xixi e cocô para tudo quanto é lado. Eram
pessoas normais que foram pegas bêbadas, pessoas esquecidas pela sociedade”,
lembra.
De acordo
com o livro “Holocausto Brasileiro” , lançado em junho
deste ano pela jornalista Daniela Arbex, o genocídio deixou 60 mil mortos. Isso
porque, além das condições insalubres, o hospício chegou a ter 5 mil pessoas ao
mesmo tempo, enquanto a capacidade original era para 200 pacientes. Nesses
períodos de maior lotação, em média 16 pessoas morriam todos os dias.
Reforma
psiquiátrica
Ainda que
aquela rotina tenha ficado conhecida da pela sociedade e autoridades após
denúncia da revista O Cruzeiro, em 1961, as mortes dos internos continuavam sem
que ninguém fizesse algo de fato. A situação começou a mudar quando Firmino
entrou no hospício e publicou uma série de reportagens sobre os manicômios de
Minas Gerais. Por conta da repressão, ele deixou a reportagem sobre o hospital
de Barbacena por último.
“Um
jornal (O Estado de Minas) conservador numa sociedade conservadora. Eu tive a
sorte de entrar lá. Na época Roberto Drummond me orientou: ‘Só conta o que você
viu’. Eu fiz uma narrativa e usei a tática de começar a série com textos mais
fraquinhos. Sobre os outros hospícios. Cada dia a reportagem ia ficando mais
pesada. Só descrevia, sem denunciar. Então houve uma espécie de permissão da
direção do jornal. Deixei que o leitor imaginasse. Aí não tinha mais como
interromper, o jornal começou a vender muito. Acabei ganhando o Prêmio Esso de
Jornalismo”, conta.
A
denúncia chamou atenção de profissionais da época, como o psiquiatra italiano
Franco Basaglia que liderava um movimento antimanicomial em vários países do
mundo. “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo
presenciei uma tragédia como essa”, disse na ocasião ao visitar o Colônia. Foi
Basaglia que pediu para Firmino escrever um livro sobre o caso. As reportagens
foram reunidas então na obra intitulada “Nos Porões da Loucura”.
O caso
ganhou repercussão e cinco anos depois, segundo Firmino, boa parte dos internos
tinha sido reintegrada a outros manicômios de Minas Gerais. Apesar disso,
ninguém nunca foi punido pelas mortes. Na opinião do jornalista, muitos dos
funcionários não tinham a exata proporção do que estavam fazendo com aquelas
pessoas. “Tem até um filme, chamado Hannah Arendt, que fala da banalidade do
mal. As pessoas não têm consciência do que elas fazem. Se você pegasse aquela
atendente que esfregava vassoura nas costas dos internos, ele diria que estava
fazendo aquilo com o maior carinho. Eles (funcionários) estavam cumprindo
ordem. As pessoas fazem isso no automático, sem pensar.”
Fonte:http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/mg/2013-09-16/era-um-campo-de-concentracao-diz-1-jornalista-a-ver-o-holocausto-brasileiro.html
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